Fora das escolas, música afro-baiana carrega ensinamentos sobre a cultura negra
A história do continente africano e de que grandes lideranças de lutas antirracistas ao redor do mundo sempre estiverem fora dos planos no ensino escolar regular brasileiro. E mesmo após a aprovação da Lei 10.639 de 2003, que tornou obrigatório no país o ensino de história e de cultura africana e afro-brasileira, esse conhecimento pouco chegou às salas de aula.
Porém, nas ruas e ladeiras de Salvador, esse ensinamento chegou, mas de outra forma. Imagine milhares de brasileiros juntos cantando sobre a cultura da Etiópia, da Guiné-Bissau, de Mali, ou da Nigéria. Na terra onde “negros conscientizados cantam e tocam no Pelô” isso é mais do que um exercício de imaginação, é um fato.
Um dos hinos do carnaval de Salvador conta justamente uma história africana. O “eu falei faraó” é mais do que um anúncio de canção, é um símbolo de como a cultura baiana retornou ao continente africano para beber da fonte originária do seu povo.
“É a consciência negra, essa luta pela igualdade racial, é tudo isso que faz acontecer essas temáticas. Foi por essa luta que surgiu o Ilê Aiyê e todos os blocos afro da Bahia, e foi através desses blocos que começou a se cantar a história de vários países africanos, de vários reis e rainhas", disse ao g1 a cantora Margareth Menezes.
"Sempre com muitas dificuldades, e sem apoio, vindo das favelas, mas conseguiram fazer um trabalho incrível usando a música como ferramenta condutora dessas referências, que são superficiais, mas que já foram importantes para o fortalecimento dessa busca da gente conhecer mais sobre o legado do povo africano, sobre as nações trazidas para cá escravizadas e referências para nós nessa contemporaneidade”, continuou Margareth.
Margareth Menezes diz que consciência negra gerou música com temáticas africanas — Foto: Rogério Vital
A música negra da Bahia, especialmente a partir dos anos 70 com os blocos afro, ensinou nas ruas, a história que não nos foi ensinada nas escolas.
“O que se ensina nas escolas ainda é muito pouco, mas graças a Deus pelo esforço do povo negro, dos pesquisadores, estão vindo à tona novas informações e histórias importantes que colaboram na formação da humanidade e que tem a ver com essa questão da consciência negra", diz a cantora.
"A música é uma ferramenta dessa emancipação, dessa divulgação, dessa afirmação da luta pela igualdade racial no Brasil e no mundo, porque não se faz só aqui. A música é um veículo incrível de transformação social. E é usada para movimentar a memória e afirmar a necessidade de conhecimento, além de divertir, de falar do amor ou da natureza, essa também é uma função da música”, afirma Margareth.
Foi através desse trabalho na música e longe das salas de aulas que milhares de baianos aprenderam sobre uma das maiores relíquias do território africano, que fica em uma igreja histórica feita em rochas na Etiópia. Ao som de “na cruz de Lalibela”, o Olodum contou em 2015 a história do rei Lalibela, um líder africano do século 12, que se apresentava como herdeiro da dinastia do Rei Salomão.
Ano após ano, a passagem do bloco pelas ruas históricas do Pelourinho ou em qualquer canto em que a banda esteja é um aula sobre a história do mundo negro.
Ao longo dos mais de 40 anos, o Olodum já homenageou mais de 14 países africanos, além de ter retratado personagens históricos da cultura africana como a Rainha Yaa Assentada, o faraó Aquenáton e sua mulher Nefertiti, entre outros.
Música afro-baiana carrega ensinamentos sobre a cultura negra — Foto: Divulgação/Olodum
O grupo tornou-se sinônimo de ensinamentos da cultura africana, incluindo o fato de ter uma escola própria voltada para a juventude do Centro Histórico de Salvador.
Para o compositor e cantor Leandro Luther Fullmaça, que tem músicas gravada por artistas como Olodum, Margareth Menezes, Harmonia do Samba, Araketu e outros, para além dos ensinamentos, a música afro-baiana é elemento fundamental na autoestima do povo negro brasileiro.
“É inegável a contribuição da música afro baiana, do afro pop e do samba reggae para educação e autoestima da população afro-brasileira, já que essa influência é para além da Bahia, é algo nacional mesmo. E a partir disso, é interessante lembrar os percursores, o Olodum com suas músicas que relatam vitórias e progressos do povo negro, além da diáspora e de África. Relatando sobretudo histórias e guerrilhas à qual o povo negro participou e conseguiu trazer uma representação para toda população se reencontrar, se sentir pertencente”, conta.
“Se não fosse o Ilê Aiyê…”
Primeiro bloco afro da Bahia, o Ilê Aiyê tornou-se o “Mais belo dos belos” falando de amor, mas sobretudo de autoestima do povo negro e contanto histórias de conquistas e líderes do movimento negro e da luta antirracista.
Música afro-baiana carrega ensinamentos sobre a cultura negra — Foto: Sérgio Pedreira/ Ag. Haack
É possível que um leigo em questões raciais não saiba quem foi o medalhista olímpico estadunidense John Carlos, ou a ativista por direitos civis Fannie Lou Hamer ou o jamaicano Marcus Garvey, primeiro presidente da Associação Universal para o Progresso Negro e Liga das Comunidades Africanas. Mas todos estes estão presentes quando, na Ladeira do Curuzu, o Ilê Aiyê saúda a “América Africana”, exaltando figuras históricas do movimento negro pelo mundo.
Os tambores do Ilê Aiyê também trataram de ensinar através da música sobre a descendência do povo baiano. Ao longo dos anos, o grupo também retratou em seus carnavais e músicas, histórias como a do Reino Daomé, atual Benin, um dos locais de onde mais pessoas escravizadas saíram em direção ao Brasil, assim como da rainha Agotimé e ou do culto aos voduns, o candomblé e outros elementos importantes da cultura negra.
As revoltas ocorridas na Bahia, como a dos Búzios e a dos Malês são outros capítulos nos ensinamentos passados pelos blocos afro. Movimentos históricos que passam rapidamente pela vida do estudante nas escolas, ambos são detalhados em canções célebres da música afro-baiana.
Presos, mortos ou deportados após a revolta de janeiro de 1835, os malês não imaginariam que mais de 180 anos depois da luta por liberdade, o nome de seus líderes seriam cantados a plenos pulmões por integrantes do maior bloco afro da Bahia.
Sob os batuques do Ilê, os alufás Dandara, Salin, Licutan, Nicobé, Ahuna e a lendária Luiza Mahin seguem em luta por direitos e igualdade.
'Nobre guerreiro negro lutador'
A vida de Nelson Mandela é um capítulo à parte nos ensinamentos da música afro-baiana. A campanha da medalha do ouro olímpico no boxe em Tóquio 2020 do pugilista baiano Hebert Conceição é um exemplo da influência da música e de Mandela.
Foi no ritmo de “nobre guerreiro negro lutador”, uma homenagem do Olodum ao líder sul-africano, que o baiano trouxe a medalha de ouro para o Brasil.
Presidente do Olodum, João Jorge Rodrigues destacou que o grupo ser trilha da campanha de um jovem campeão morador da periferia de Salvador demonstra a força da música afro-baiana nos bairros populares da capital da Bahia.
“A cultura dos blocos afro chegou em diversos bairros da periferia de Salvador, no São Caetano, na Liberdade, no Pau da Lima. Levamos Mandela e a cultura panafricana a diversos pontos da cidade. Isso nos deixa muito felizes”, afirma João Jorge.
Presidente do Olodum, João Jorge celebra influência do bloco nas periferias de Salvador — Foto: Arquivo Pessoal
'Entre flores e espinhos'
Apesar da certeza de que a música afro-baiana é uma escola, há também a sensação da falta de valorização desse movimento pela indústria cultural. Para o compositor Leandro Fullmaça, o movimento é uma espécie de ato de resistência, já que segundo ele, há um silenciamento desse tipo de canção.
“Eu vejo que silenciar esse movimento do Ilê, do Muzenza, do Malê Debalê tem sido uma prática do mercado e da indústria da música baiana. Porque infelizmente tudo que tem conteúdo e leva informação à população tende a ser castrado, perseguido, invisibilizado. Então, o que eu penso é que teriam diversos Oloduns, Malês, Ilês para nascer, mas ficamos acorrentados ao sistema que exige milhões para investimento e divulgação de projetos e, desta forma, o povo é retirado da jogada, já que somos insuficientes economicamente e fica difícil adentrar nesse meio”, critica o compositor.
Para Leandro, os compositores de temática racial que conseguem se inserir no meio ainda enfrentam outro tipo de resistência no mercado, que, na visão dele, “prefere” que esses compositores sigam no anonimato. O compositor vê a situação com preocupação.
Compositor critica apropriação de falta de oportunidades para artistas que trabalham com temática afro — Foto: Acervo Pessoal
“Além dos blocos afro, temos outros nomes como Aloísio Menezes, Carlinhos Brown, Margareth Menezes, Márcia Short, mas frente à branquitude ainda somos minoria, especialmente no que tange a insuficiência econômica. Os brancos ficam ricos com a música e a população afro-brasileira termina não sendo abonada, nem bem sucedida economicamente porque não tem investidores, empresários que apostam na música com conteúdo”, diz.
“E ainda tem esse efeito de apropriação. As músicas que vão para as rádios são de compositores negros baianos, mas infelizmente interpretadas por pessoas brancas. O que me faz crer que o nosso lugar é sempre no anonimato. Servimos ainda para servir ainda como compositores, mas não como artistas principais", reflete Leandro, que é finalista do Festival de Música e Artes – PanAfro 2021 promovido pelo Bloco Olodum..
"Isso me preocupa porque é uma gama de novos artistas que não consegue espaço para demonstrar e expressar sua arte, mas não tenho dúvida da contribuição que a música afro-baiana trouxe, inclusive para o hip hop baiano, o próprio Rappa, que vira e mexe cita o Ilê, o Afroreggae no Rio de Janeiro, Nação Zumbi...eles não podem negar a influência da música baiana em seu teor artístico. Não dá pra negar a influência educacional de representatividade e autoestima vinculada à música afro-baiana”, completa o compositor.
O fato é que seja na luta por espaço, nas ruas, defendendo suas composições, ou nas salas de aulas próprias das escolas dos blocos, um ensinamento quase nunca acessado nos colégios tradicionais segue se eternizando nas vozes e mentes do povo, especialmente dos baianos. A certeza é de que enquanto houver batidas nos tambores dos mestres Memeu, Andreia, Mario Pam, Geraldinho e tantos outros, há de haver ensinamentos sobre África, Bahia e lutas por igualdade.
Fonte: G1Bahia
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